quinta-feira, 19 de março de 2009

Memórias póstumas da menina da janela

Aquele dia
Era um dia qualquer de uma semana qualquer. Eu poderia dizer que era um mês qualquer se não se tratasse de novembro. Todas as vezes que me lembro de novembro inspiro todo o ar que for suportado por meus pulmões para recordar das tardes em que eu sentia o cheiro das primavera que vinha do lado de fora. A tarde chegava ao fim e eu, como de costume, estava sentada à cama observando os raios do sol que vinham me dizer adeus todos os dias, como se o amanhã não os trouxesse de volta.

A janela
Quadrada, película escura, cortinas laranja. É o que qualquer dirá se for interrogado sobre a minha janela. Mas eu, que tenho a estranha mania de procurar poesia onde não há, falo mais: Minha janela é quadrada, tem película escura, cortinas laranja e é privilegiada nos fins de tarde, especialmente no mês de novembro, quando o sol me traz o cheiro das flores que consegue atravessar até mesmo as grades que me separam do movimento das pessoas e dos carros lá fora.

Eu, a menina da janela
O que eu mais gosto nas coisas, concretas ou não, é o cheiro. O olfato é o sentido que mais prezo desde o momento em que eu percebi que é o único capaz de enfrentar as grades e a película escura da minha janela. Parênteses: Como para toda regra há uma exceção, eu admiro muito mais a luz do sol nos fins de tarde do que o cheiro de amor-perfeito que invadiria o lado de dentro daquele cômodo e todo o meu interior naquele dia. Fecha parênteses.

Amor-perfeito
Eu só tentava seguir a minha rotina, mas algo novo aconteceria naquela tarde. Ao sentir os raios de sol invadirem as minhas retinas, me invadiu, sem pedir licença, um cheiro novo. Quando falo "novo", não quero dizer que eu nunca o sentira, eu tinha certeza que já me ocorrera aquela sensação, assim como tinha certeza de que, ainda que eu habitasse um outro plano, o sol invadiria amanhã a minha janela e tocaria os lençóis brancos que vestiam a minha cama. Inalei o ar pela última vez, com toda a força e vontade que me foi possível, deixei-o invadir desde minha cabeça até a ponta dos meus pés. Era cheiro de amor-perfeito, tive certeza.

O amor (im)perfeito
Permaneci sentada, deixando que o amor-perfeito invadisse meus pulmões, que os levaria, através da corrente sanguínea, para todos os outros orgãos, mexendo com todos os meus sentidos.
O sol lentamente se escondia, levando consigo a essência de amor-perfeito, quando minha janela passou a ser bombardeada por doces pancadas causadas por pedras lançadas por mãos com cheiro de amor (im)perfeito. O corpo que possuía aquelas mãos desejava-me da mesma forma que eu passei a desejá-lo daquele momento em diante. 
Lá de cima eu o observava e lembrava das tardes de sábado nas quais eu ouvia contos de fada vindos da minha vó materna, que segurava o livro encantado de páginas amareladas com uma de suas velhas mãos e trazia na outra uma xícara de porcelana com flores cor-de-rosa da qual eu via sair vapor que subia em busca do céu, mas desaparecia muito antes de chegar ao teto.
Vendo-o lá embaixo, lembrei das tantas vezes que minha avó me contara sobre a história de Rapunzel. 
Eu, que não tinha tranças, atirei-me.

P.S.: Morrer de amor não dói.

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