quarta-feira, 8 de julho de 2009

Sobre o mar, pescadores e meninas que dançam

Troca de favores
Eu era um simples pescador que saía todos os dias pouco antes do amanhecer com meu barco atrás do que o mar quisesse me ofertar. O mar colocava ali e me tirava daqui, um dia me roubava uma rede, outro dia me roubava o chapéu, mas é a tal troca de favores, ele me dá isso e eu dou aquilo. Uma mão lavando a outra. Às vezes o mar era bem humorado e, de tão generoso, me lavava o corpo inteiro, mas o bom humor passava no outro dia, quando ele era cruel e sugava algo sem dar nada em troca. Com o tempo a gente aprende a lidar com isso, como um empregado se habitua ao seu patrão exigente.
O lado de cá
Não costumava sair de casa depois de voltar do mar, no máximo ia até o botequim na entrada da vila pra prosear com os outros pescadores, o assunto era sempre o mesmo, nada mudava naquela vila. Alguém casou, alguém morreu, alguém pariu. Nada de assassinatos ou grandes roubos, isso é coisa da cidade grande, que fica lá do outro lado, por trás das pequenas construções antigas, por trás da fumaça, do barulho dos carros, escondendo o mar e toda essa gente de cá.
A boca miúda
Na primeira vez que eu vi a menina o sol já estava indo embora, ela tinha os pés descalços, brancos como a areia, pequenos como os de uma criança, vestia um desses vestidos brancos feitos pelas rendeiras daqui da redondeza, os cabelos estavam soltos e dançavam junto com o vento, as mãos tocavam a água devagar, depois eram levadas até o rosto pálido e magro que parecia ter sido desenhado a mão, tinha um nariz fino, olhos pequenos e tristes, uma boca pequena que, de tão miúda, parecia nem poder falar.
A segunda vez que avistou a boca miúda
Fiquei uma semana sem ir ao botequim depois de ver a menina pela primeira vez, já tinha esquecido a tal quando resolvi sair de casa pra tomar dois dedos de cachaça quando avistei de longe um ser pequeno vestindo branco e bailando junto com o vento e os cabelos. Cheguei mais perto e mais e mais, até que ela parou e os olhinhos deixaram de ser tristes para serem assustados. Segurou a saia e saiu correndo em direção à vila, mostrando a canela fina como uma vara de pescar. Seus pés eram a isca e seu olhar era o cais. E a sua boca, ah, era um anzol desses que prendem um peixe e fica difícil de largar o bicho.
O cais
Os dias passaram e a menina continuava indo ali, eu só olhava de longe, preferia ver seus olhos tristes, não gostava de vê-los assustados. Um cais devia lembrar os pescadores que partiram e não os perigos do mar.
A generosidade do mar
Levantei bem antes do amanhecer, o céu ainda tava escurinho, não havia nenhum pé de gente do lado de fora. Acendi o candeeiro e fiz café, procurei meu velho chapéu, arrumei as redes, quando saí o sol começava a aparecer lá longe, ainda batendo na água.
O mar foi generoso comigo naquele dia, o barco voltou carregado, os pescadores nem acreditaram quando viram. Já sabia que amanhã ele ia me cobrar, e dessa vez ele ia ser mais cruel que o normal.
O anzol sorri
Depois da pescaria boa da manhã eu fui encontrar a menina. Agora o mar molhava até seu vestido, na altura dos joelhos ou mais pra cima, dessa vez ela me olhou, seus olhos estavam tristonhos, profundos, mas ela sorria, tombou a cabeça meio para o lado e ficou ali por um tempo, suficiente para que eu pudesse notar alguns detalhes que só ela parecia ter, depois saiu correndo mais uma vez mostrando a canela e eu fiquei parado, como se ainda estivesse encarando aqueles olhos tristes e vendo aquele anzol sorrir.
Coloca ali e tira daqui
No dia depois da grande fartura eu não levantei tão cedo, o sol já estava no céu quando eu saí com o barco pela água, deixei meu chapéu em casa porque sabia que o mar ia querer alguma coisa importante e o chapéu era companheiro antigo. Lancei a rede ao mar e não demorou pra que eu pudesse recolher, parecia que o peixe era grande. Puxei a rede e me assustei quando vi que o que eu tinha nos meus braços era o meu pequeno cais do porto. Com as mãos tirei seu cabelo, que agora não dançava de tão molhado, do seu rosto franzino. Pude finalmente tocar aquele nariz fino e aquela boca. Eu pude ver que ela não queria me falar nada e nem podia. Ela só queria me prender com aquele pequeno anzol, antes tão vermelho, agora tão pálido, mas não conseguiu. E por não conseguir se deixou levar.
Pode não ter conseguido me prender com seu anzol, mas meus sentimentos ficaram para sempre aportados naquele olhar triste de quem espera por algo sabendo que não alcançará.

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